Quem me conhece sabe que, na
contramão das opiniões predominantes sobre bichos, eu tenho muita empatia por
gatos e não, não gosto de cachorros.
Quis o destino (ou as
circunstâncias, ou o acaso, ou a Árvore da Vida) que num curto intervalo minha
jornadinha topasse com três bichanos, cujo convívio rendeu uma história
completamente prosaica, mas para mim, acalentadora. Para essa história leve,
uma trilha sonora condizente.
Segue abaixo:
1 – O Fantasma da ambulância
baixada
Em meados de janeiro, durante a
Operação Verão em Pontal do Paraná, estava de serviço quando ouvi um miado
agudo e longo, típico de filhote com fome. De fato, após uma boa procura no
meio daquela rampa cheia de viaturas e equipamentos, achei um pequeno
branquinho miando debaixo de uma ambulância fora de operação. Magrelo e muito
arisco, percebi também que alguém já colocara um pote com água e um pouco de
comida. Descobri mais tarde que fora um tenente, que também era afeito com
bichanos.
Compadecido com o bichinho, e já
imune à toxoplasmose há muitos anos, comecei uma aproximação. Não foi fácil.
Gatos são de natureza desconfiada e não mendigam carinho. É por isso que gosto
mais deles. Foi um bom tempo até conseguir acariciá-lo, mas qualquer movimento
brusco já o assustava. Aos poucos, entretanto, ele foi se acostumando. E,
óbvio, ficando mais folgado. Passou a andar mais pela rampa de viaturas e os
bombeiros que trabalhavam comigo começaram, cada um, a trazer ração,
abastecê-la num potinho, e cuidar comunitariamente do gato bombeiro, inclusive
um dos cabos, que dizia detestar gatos. Os nomes para o bichano também foram
variados. Um chamava de Visagem, outro de Halligan, outro de Fantasma. Há quem
chamasse também de Ghost (ou Gost; não sei se era o nome inglês ou homenagem ao
Grupo de Operações de Socorro Tático). Comecei chamando de Halligan, mas acabei ficando com Fantasma.
As folgas eram um sarro.
Costumava ir ao quartel para emprestar uma prancha de surfe e, ocasionalmente,
treinar calistenia no tatame do almoxarifado. E lá ia o Fantasma atrás de mim.
Eu fazia um rolamento, ele corria atrás e pulava feito doido. Eu fazia uma
parada de mão e lá vinha ele dar tapas nos meus dedos. Já era afeiçoado com o
gato, mas não podia ficar com ele, hospedado numa pousada (e muito menos
levá-lo para Guarapuava numa moto). A solução veio algum tempo depois, quando
voltei de uma folga de cinco dias, através de trocas de serviço. Cheguei ao
quartel e cadê o Fantasma? Fiquei preocupado, pois ele já estava muito
acostumado a andar pra todo canto, e o fluxo de veículos (pesados, inclusive)
era grande. Não duvidava do risco dele ter virado patê. O alívio veio quando
comentei a ausência dele e um dos soldados contou a conclusão: sua esposa e
filhos adoraram o gato e decidiram adotá-lo. Muito feliz e aliviado, desejei
boa sorte ao novo dono e, confesso, senti um pouco de saudades do meu
“companheirinho” de treino.
2 – O resgate de filme americano
Já de volta para Guarapuava, fui
designado para Colônia Vitória, um posto com fama de calmo, mas desesperador
para a maioria dos bombeiros, por seu isolamento. É um local que
particularmente gosto; é quieto, bom para leitura e com bastante espaço para
plantar. Manter a cabeça ocupada enquanto não acontecem ocorrências é
fundamental para uma boa saúde.
Certa manhã, o telefone tocou.
Uma senhora muito educada contou uma longa história sobre um filhote de gato em
sua propriedade que, meio perdido, caiu dentro de um poço e passou a noite
miando por lá. Ela, sem sucesso na tentativa de resgate – devido à profundidade
– decidiu ligar para os “brigadianos” (ela veio do Rio Grande do Sul). E lá
vamos nós, cabo Rudi e eu, no caminhão, para tirar o gato do poço.
No meio dos pinheiros araucária,
lá estava o poço, e no fundo, a uns 5 metros, agarrado a uma tábua, um filhote amarelinho,
já quieto e provavelmente exausto. Meu chefe de equipe e eu olhamos, pensamos,
e decidimos a ação. Montado o sistema, peguei minha mochila, esvaziei e a
clipei na cadeirinha. Desci até o gatinho e ele veio até minha mão ao invés de
se acuar. Peguei-o rapidamente, coloquei na mochila e fechei o zíper. Subi e
então devolvi o bichano à dona, que chorou em agradecimento. Orientamos a
senhorinha a fechar o poço e ela, ainda emocionada, acatou as instruções.
Voltamos para o quartel rindo das ocorrências de “filme americano” que aparecem
de vez em quando por aqui.
Ainda hoje, quando vou embora e
passo perto da casa onde atendi essa ocorrência, penso em como estará o
“amarelinho”. Qualquer dia bato lá na frente e pergunto.
3 – A contagem regressiva de Nêmesis
Pouco tempo depois, ainda na
Colônia, cheguei para o serviço e cabo Renato, no seu habitual humor
espirituoso, disse: “Lara, apareceu uma surpresa pra você aqui”. Minha espinha
arrepiou. Surpresas de quartel quase nunca são boas. Estiquei o pescoço para
dentro do almoxarifado e vi, dentro de uma caixinha com panos, um filhote
cinzento de cintilantes olhos azuis. “ela apareceu aqui depois da tempestade,
provavelmente alguém abandonou”. E lá estava mais uma encrenquinha que miava o
dia todo, mesmo com comida e água. Pra piorar, ela (era uma fêmea) começou a se
esconder entre o motor do ABTR (o caminhão de incêndios) e a cabine, para meu
desespero. Se tivéssemos uma ocorrência e arrancássemos o caminhão com a gata
lá dentro, ela certamente viraria purê. E pra piorar ainda mais, um dos
militares da outra equipe detestava gatos e ameaçou dar um sumiço nela dentro
de alguns dias, se eu não a adotasse logo. Se a ameaça era séria ou não, até
hoje não descobri.
Quando conquistei a confiança da
gatinha, e ela já me seguia silenciosa por todo canto, tirei algumas fotos e
contei com a ajuda da minha querida prima Luciane para encontrar um lar para o
bichinho. Eu acreditava que seria fácil, pois um filhote mestiço de siamês com
aqueles olhões azuis certamente chamaria a atenção. E assim foi. Uma moça,
interessada na adoção, contatou minha prima e acertamos a entrega para a semana
seguinte, em cima do prazo que o cabo estipulara (de brincadeira... ou não).
Até a entrega da gata, dei muita
risada. Por falta de nome, chamei-a de Nêmesis (um nome horrível, é verdade) e
ela, já mais dócil, saía dando tapas em tudo que se mexia, como qualquer gato
saudável faz. Adotou uma pilha de colchões da defesa civil como sua casinha e às
vezes, por algum susto, ou simples excesso de energia, dava cada arrancada que
chegava a patinar as patas. Felizmente parou de explorar o motor do caminhão e,
quando fui buscá-la no quartel para deixá-la no meu apartamento, até a hora da
entrega, a praguinha fez cocô no meu carro... e xixi na minha colcha. Eu,
idiota, lembrei da ração, da água, da caixa de transporte... e esqueci uma
óbvia caixa de areia, que teria evitado todo esse entrevero. Mas no fim das
contas, na noite que a entreguei para sua nova dona, ela parecia anormalmente
calma. Enquanto dirigia até o local da entrega, Nêmesis sentou no meu colo e
ficou parada, sem causar problemas. Entreguei feliz, mas naquele aperto bem de
leve. Afeiçoar-se é uma faca de dois gumes.
Alguns dias depois a dona
contatou minha prima, contando da alegria pujante de seu bichinho. E ficou de
mandar fotos.
E mais uma vez a Colônia ficou
quieta. Sem mais miados, só com o burburinho do colégio nos fundos do quartel
e, à noite, com o assobio do vento que sopra muito mais aqui, nos campos abertos
de Entre Rios, do que em Guarapuava.
Às vezes penso nos três filhotes
e torço para que simplesmente estejam bem.
Passar as estações aqui é
refletir sobre os mais bobos assuntos, mesmo quando o país está pegando fogo.
De certa forma, é saudável.
Até uma próxima.
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