sexta-feira, 19 de maio de 2017

O destino cruzado de três gatos e um bombeiro.


Quem me conhece sabe que, na contramão das opiniões predominantes sobre bichos, eu tenho muita empatia por gatos e não, não gosto de cachorros.
Quis o destino (ou as circunstâncias, ou o acaso, ou a Árvore da Vida) que num curto intervalo minha jornadinha topasse com três bichanos, cujo convívio rendeu uma história completamente prosaica, mas para mim, acalentadora. Para essa história leve, uma trilha sonora condizente.

Segue abaixo:

1 – O Fantasma da ambulância baixada

Em meados de janeiro, durante a Operação Verão em Pontal do Paraná, estava de serviço quando ouvi um miado agudo e longo, típico de filhote com fome. De fato, após uma boa procura no meio daquela rampa cheia de viaturas e equipamentos, achei um pequeno branquinho miando debaixo de uma ambulância fora de operação. Magrelo e muito arisco, percebi também que alguém já colocara um pote com água e um pouco de comida. Descobri mais tarde que fora um tenente, que também era afeito com bichanos.
Compadecido com o bichinho, e já imune à toxoplasmose há muitos anos, comecei uma aproximação. Não foi fácil. Gatos são de natureza desconfiada e não mendigam carinho. É por isso que gosto mais deles. Foi um bom tempo até conseguir acariciá-lo, mas qualquer movimento brusco já o assustava. Aos poucos, entretanto, ele foi se acostumando. E, óbvio, ficando mais folgado. Passou a andar mais pela rampa de viaturas e os bombeiros que trabalhavam comigo começaram, cada um, a trazer ração, abastecê-la num potinho, e cuidar comunitariamente do gato bombeiro, inclusive um dos cabos, que dizia detestar gatos. Os nomes para o bichano também foram variados. Um chamava de Visagem, outro de Halligan, outro de Fantasma. Há quem chamasse também de Ghost (ou Gost; não sei se era o nome inglês ou homenagem ao Grupo de Operações de Socorro Tático). Comecei chamando de  Halligan, mas acabei ficando com Fantasma.
As folgas eram um sarro. Costumava ir ao quartel para emprestar uma prancha de surfe e, ocasionalmente, treinar calistenia no tatame do almoxarifado. E lá ia o Fantasma atrás de mim. Eu fazia um rolamento, ele corria atrás e pulava feito doido. Eu fazia uma parada de mão e lá vinha ele dar tapas nos meus dedos. Já era afeiçoado com o gato, mas não podia ficar com ele, hospedado numa pousada (e muito menos levá-lo para Guarapuava numa moto). A solução veio algum tempo depois, quando voltei de uma folga de cinco dias, através de trocas de serviço. Cheguei ao quartel e cadê o Fantasma? Fiquei preocupado, pois ele já estava muito acostumado a andar pra todo canto, e o fluxo de veículos (pesados, inclusive) era grande. Não duvidava do risco dele ter virado patê. O alívio veio quando comentei a ausência dele e um dos soldados contou a conclusão: sua esposa e filhos adoraram o gato e decidiram adotá-lo. Muito feliz e aliviado, desejei boa sorte ao novo dono e, confesso, senti um pouco de saudades do meu “companheirinho” de treino.

2 – O resgate de filme americano

Já de volta para Guarapuava, fui designado para Colônia Vitória, um posto com fama de calmo, mas desesperador para a maioria dos bombeiros, por seu isolamento. É um local que particularmente gosto; é quieto, bom para leitura e com bastante espaço para plantar. Manter a cabeça ocupada enquanto não acontecem ocorrências é fundamental para uma boa saúde.
Certa manhã, o telefone tocou. Uma senhora muito educada contou uma longa história sobre um filhote de gato em sua propriedade que, meio perdido, caiu dentro de um poço e passou a noite miando por lá. Ela, sem sucesso na tentativa de resgate – devido à profundidade – decidiu ligar para os “brigadianos” (ela veio do Rio Grande do Sul). E lá vamos nós, cabo Rudi e eu, no caminhão, para tirar o gato do poço.
No meio dos pinheiros araucária, lá estava o poço, e no fundo, a uns 5 metros, agarrado a uma tábua, um filhote amarelinho, já quieto e provavelmente exausto. Meu chefe de equipe e eu olhamos, pensamos, e decidimos a ação. Montado o sistema, peguei minha mochila, esvaziei e a clipei na cadeirinha. Desci até o gatinho e ele veio até minha mão ao invés de se acuar. Peguei-o rapidamente, coloquei na mochila e fechei o zíper. Subi e então devolvi o bichano à dona, que chorou em agradecimento. Orientamos a senhorinha a fechar o poço e ela, ainda emocionada, acatou as instruções. Voltamos para o quartel rindo das ocorrências de “filme americano” que aparecem de vez em quando por aqui.
Ainda hoje, quando vou embora e passo perto da casa onde atendi essa ocorrência, penso em como estará o “amarelinho”. Qualquer dia bato lá na frente e pergunto.

3 – A contagem regressiva de Nêmesis

Pouco tempo depois, ainda na Colônia, cheguei para o serviço e cabo Renato, no seu habitual humor espirituoso, disse: “Lara, apareceu uma surpresa pra você aqui”. Minha espinha arrepiou. Surpresas de quartel quase nunca são boas. Estiquei o pescoço para dentro do almoxarifado e vi, dentro de uma caixinha com panos, um filhote cinzento de cintilantes olhos azuis. “ela apareceu aqui depois da tempestade, provavelmente alguém abandonou”. E lá estava mais uma encrenquinha que miava o dia todo, mesmo com comida e água. Pra piorar, ela (era uma fêmea) começou a se esconder entre o motor do ABTR (o caminhão de incêndios) e a cabine, para meu desespero. Se tivéssemos uma ocorrência e arrancássemos o caminhão com a gata lá dentro, ela certamente viraria purê. E pra piorar ainda mais, um dos militares da outra equipe detestava gatos e ameaçou dar um sumiço nela dentro de alguns dias, se eu não a adotasse logo. Se a ameaça era séria ou não, até hoje não descobri.
Quando conquistei a confiança da gatinha, e ela já me seguia silenciosa por todo canto, tirei algumas fotos e contei com a ajuda da minha querida prima Luciane para encontrar um lar para o bichinho. Eu acreditava que seria fácil, pois um filhote mestiço de siamês com aqueles olhões azuis certamente chamaria a atenção. E assim foi. Uma moça, interessada na adoção, contatou minha prima e acertamos a entrega para a semana seguinte, em cima do prazo que o cabo estipulara (de brincadeira... ou não).
Até a entrega da gata, dei muita risada. Por falta de nome, chamei-a de Nêmesis (um nome horrível, é verdade) e ela, já mais dócil, saía dando tapas em tudo que se mexia, como qualquer gato saudável faz. Adotou uma pilha de colchões da defesa civil como sua casinha e às vezes, por algum susto, ou simples excesso de energia, dava cada arrancada que chegava a patinar as patas. Felizmente parou de explorar o motor do caminhão e, quando fui buscá-la no quartel para deixá-la no meu apartamento, até a hora da entrega, a praguinha fez cocô no meu carro... e xixi na minha colcha. Eu, idiota, lembrei da ração, da água, da caixa de transporte... e esqueci uma óbvia caixa de areia, que teria evitado todo esse entrevero. Mas no fim das contas, na noite que a entreguei para sua nova dona, ela parecia anormalmente calma. Enquanto dirigia até o local da entrega, Nêmesis sentou no meu colo e ficou parada, sem causar problemas. Entreguei feliz, mas naquele aperto bem de leve. Afeiçoar-se é uma faca de dois gumes.
Alguns dias depois a dona contatou minha prima, contando da alegria pujante de seu bichinho. E ficou de mandar fotos.
E mais uma vez a Colônia ficou quieta. Sem mais miados, só com o burburinho do colégio nos fundos do quartel e, à noite, com o assobio do vento que sopra muito mais aqui, nos campos abertos de Entre Rios, do que em Guarapuava.
Às vezes penso nos três filhotes e torço para que simplesmente estejam bem.
Passar as estações aqui é refletir sobre os mais bobos assuntos, mesmo quando o país está pegando fogo. De certa forma, é saudável.

Até uma próxima.

Nenhum comentário: