quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A Desolação de Lara

Por volta de dezembro do ano passado, um fato começou a gerar preocupação no quartel: O Cabo Paulo, vulgo Paulinho, ia tirar férias. Preocupante, pois, afinal, ele era o rancheiro do grupamento (o militar responsável por fazer a comida), e possuía não só paixão pela coisa como uma habilidade enorme no manejo e preparação de alimentos. Ao contrário da fama negativa e engraçada que a maioria dos quartéis possui por conta de sua comida (carne de monstro, frango dinamitado e chá de gandola são gírias de caserna recorrentes), em Guarapuava come-se muito bem. Até melhor que em muitos restaurantes por aí...
Era preciso achar um substituto. Alguém que assumisse a função de rancheiro no longo mês que seguiria das suas férias. E eu, metido como sempre, coloquei meu nome como voluntário.
Não é segredo para ninguém que minha maior decepção de 2013 foi reprovar na última prova para admissão ao curso de guarda-vidas, coisa que ainda almejo loucamente dentro do Corpo de Bombeiros. Negligência minha, com certeza, que irei reparar este ano, tentando novamente. O fato é que, uma vez reprovado, pensei muito em coisas que poderia fazer, já que ficaria durante todo o verão em Guarapuava, e não trabalhando no litoral. A primeira providência foi realizar minha sonhada viagem para a Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina, jornada que levou quatro dias e 1600 km, com direito até a uma visita ao Beto Carrero e um pernoite de emergência em motel (sozinho!). 

Após a viagem, resolvi imediatamente começar a autoescola e tirar a almejada categoria D, o que me permitirá no futuro pilotar a ambulância e até mesmo o caminhão de combate à incêndios. E para completar a ocupação da minha cabeça, resolvi ser o rancheiro. Primeiro, por gostar e saber um pouco sobre cozinha. Segundo, porque o horário de trabalho do rancheiro é muito bom. Mas o motivo mais forte foi o terceiro. Que explico adiante.
Eu não chego nem perto das habilidades culinárias do cabo Paulinho. Sabia que receberia críticas e muitas brincadeiras ao longo de janeiro. Mas resolvi tentar como um exercício de resiliência. Tenho um grave defeito (e acredito que toda a geração Y tenha) de ser muito sensível às críticas, muito nervoso em situações adversas ou que esteja sendo julgado. E ser rancheiro poria tudo isso a prova. E assim foi.
Durante janeiro, descobri que cozinhar é muito mais complexo. Não basta gostar. É preciso cozinhar pra muita gente, ter noção de quantidades. E ser muito rápido, pois o relógio misteriosamente acelera depois das 9h30m, e o almoço precisa ser servido às 11h30m. Além disso, some o calor terrível dentro da cozinha e a organização dos alimentos na despensa, o que toma tempo. E, vez ou outra, é preciso comprar mantimentos que faltam, e equilibrar os pedidos da guarnição com o limite de gastos que o setor financeiro estipula gerou alguns arranca-rabos onde fui coadjuvante e protagonista...
O mês passou. Pesquisava no youtube receitas novas, temperos, bem como instruções para afiar corretamente minhas preciosas facas – meus instrumentos mortais – usadas especialmente para o fim “militar-culinário”. Fui ficando mais rápido nas lâminas. Descascava batatas e cortava cebolas com mais facilidade, mas cortei os dedos também. Comprei uma caixa de band-aid especialmente pra esse tipo de coisa. E ela foi muito usada. Some aos eventuais cortes, também, as queimaduras. Por óleo, água e vapor. Já não bastassem as dificuldades que mencionei anteriormente, ainda tinha que tomar cuidado pra não me matar dentro daquela cozinha.

Observação: pelas minhas contas, devo ter me ferido umas oito vezes, todas sem gravidade. A pior foi quando enfiei a faca debaixo da unha do polegar esquerdo, o que doeu horrivelmente por dias. E só pra constar: eu não sujei comida com sangue! Eu limpava constantemente as facas! E aprendi o principal: o que causa acidentes é a faca mal afiada!
E nesse exercício de resiliência, acredito que cresci. E foi o principal objetivo. Realmente, encarei algumas situações enervantes (como atrasos no almoço, arroz queimando...), briguei com um monte de gente, recebi críticas construtivas e precisei encarar estas situações de julgamento que sempre me deixavam maluco (afinal, as pessoas estão comendo a comida que eu fiz! E se ficou ruim? Sem sal? Muito salgada? E se alguém passar mal?!).
E tive acertos. Recebi, algumas vezes, elogios das pessoas mais improváveis. E lá iam as forças se renovando pra inventar mais. Aprendi a afiar e cuidar das minhas facas. Testei novas receitas, aprendi algumas coisas importantes com colegas de serviço que já haviam passado por ali e exerci uma atividade diferente, desvendei mais essa faceta, essa engrenagem que faz a “máquina Corpo de Bombeiros” funcionar. E hoje, com o regresso do Cabo Paulinho, fico imensamente aliviado. Mais uma missão cumprida. Não de maneira tão competente, mas uma experiência a mais para poder compartilhar e contar. E algo que me trouxe ocupação e alívio para aceitar minha desolação no teste para guarda-vidas, que mexeu muito no meu orgulho.
Já fui pra incêndio, já atendi na ambulância, já vi gente morta. Já salvei gato, já mergulhei, já trabalhei em aeroporto. Já acordei de madrugada, já fiz vistoria de moto, já cavei soterramento.
E já trabalhei no rancho.



E ah, pra finalizar, no último dia de rancheiro, fiz meu exame no DETRAN, para a carteira D. Nunca fiz uma baliza de ônibus tão boa quanto aquela.