Por volta de dezembro do ano
passado, um fato começou a gerar preocupação no quartel: O Cabo Paulo, vulgo
Paulinho, ia tirar férias. Preocupante, pois, afinal, ele era o rancheiro do
grupamento (o militar responsável por fazer a comida), e possuía não só paixão
pela coisa como uma habilidade enorme no manejo e preparação de alimentos. Ao
contrário da fama negativa e engraçada que a maioria dos quartéis possui por
conta de sua comida (carne de monstro, frango dinamitado e chá de gandola são
gírias de caserna recorrentes), em Guarapuava come-se muito bem. Até melhor que
em muitos restaurantes por aí...
Era preciso achar um substituto.
Alguém que assumisse a função de rancheiro no longo mês que seguiria das suas
férias. E eu, metido como sempre, coloquei meu nome como voluntário.
Não é segredo para ninguém que
minha maior decepção de 2013 foi reprovar na última prova para admissão ao
curso de guarda-vidas, coisa que ainda almejo loucamente dentro do Corpo de
Bombeiros. Negligência minha, com certeza, que irei reparar este ano, tentando
novamente. O fato é que, uma vez reprovado, pensei muito em coisas que poderia
fazer, já que ficaria durante todo o verão em Guarapuava, e não trabalhando no
litoral. A primeira providência foi realizar minha sonhada viagem para a Serra
do Rio do Rastro, em Santa Catarina, jornada que levou quatro dias e 1600 km,
com direito até a uma visita ao Beto Carrero e um pernoite de emergência em
motel (sozinho!).
Após a viagem, resolvi imediatamente começar a autoescola e
tirar a almejada categoria D, o que me permitirá no futuro pilotar a ambulância
e até mesmo o caminhão de combate à incêndios. E para completar a ocupação da
minha cabeça, resolvi ser o rancheiro. Primeiro, por gostar e saber um pouco
sobre cozinha. Segundo, porque o horário de trabalho do rancheiro é muito bom.
Mas o motivo mais forte foi o terceiro. Que explico adiante.
Eu não chego nem perto das
habilidades culinárias do cabo Paulinho. Sabia que receberia críticas e muitas
brincadeiras ao longo de janeiro. Mas resolvi tentar como um exercício de
resiliência. Tenho um grave defeito (e acredito que toda a geração Y tenha) de
ser muito sensível às críticas, muito nervoso em situações adversas ou que
esteja sendo julgado. E ser rancheiro poria tudo isso a prova. E assim foi.
Durante janeiro, descobri que cozinhar
é muito mais complexo. Não basta gostar. É preciso cozinhar pra muita gente,
ter noção de quantidades. E ser muito rápido, pois o relógio misteriosamente
acelera depois das 9h30m, e o almoço precisa ser servido às 11h30m. Além disso,
some o calor terrível dentro da cozinha e a organização dos alimentos na
despensa, o que toma tempo. E, vez ou outra, é preciso comprar mantimentos que
faltam, e equilibrar os pedidos da guarnição com o limite de gastos que o setor
financeiro estipula gerou alguns arranca-rabos onde fui coadjuvante e
protagonista...
O mês passou. Pesquisava no
youtube receitas novas, temperos, bem como instruções para afiar corretamente
minhas preciosas facas – meus instrumentos mortais – usadas especialmente para
o fim “militar-culinário”. Fui ficando mais rápido nas lâminas. Descascava
batatas e cortava cebolas com mais facilidade, mas cortei os dedos também.
Comprei uma caixa de band-aid especialmente pra esse tipo de coisa. E ela foi
muito usada. Some aos eventuais cortes, também, as queimaduras. Por óleo, água
e vapor. Já não bastassem as dificuldades que mencionei anteriormente, ainda
tinha que tomar cuidado pra não me matar dentro daquela cozinha.
Observação: pelas minhas contas,
devo ter me ferido umas oito vezes, todas sem gravidade. A pior foi quando
enfiei a faca debaixo da unha do polegar esquerdo, o que doeu horrivelmente por
dias. E só pra constar: eu não sujei comida com sangue! Eu limpava
constantemente as facas! E aprendi o principal: o que causa acidentes é a faca
mal afiada!
E nesse exercício de resiliência,
acredito que cresci. E foi o principal objetivo. Realmente, encarei algumas
situações enervantes (como atrasos no almoço, arroz queimando...), briguei com
um monte de gente, recebi críticas construtivas e precisei encarar estas
situações de julgamento que sempre me deixavam maluco (afinal, as pessoas estão
comendo a comida que eu fiz! E se ficou ruim? Sem sal? Muito salgada? E se
alguém passar mal?!).
E tive acertos. Recebi, algumas
vezes, elogios das pessoas mais improváveis. E lá iam as forças se renovando
pra inventar mais. Aprendi a afiar e cuidar das minhas facas. Testei novas
receitas, aprendi algumas coisas importantes com colegas de serviço que já
haviam passado por ali e exerci uma atividade diferente, desvendei mais essa
faceta, essa engrenagem que faz a “máquina Corpo de Bombeiros” funcionar. E
hoje, com o regresso do Cabo Paulinho, fico imensamente aliviado. Mais uma
missão cumprida. Não de maneira tão competente, mas uma experiência a mais para
poder compartilhar e contar. E algo que me trouxe ocupação e alívio para
aceitar minha desolação no teste para guarda-vidas, que mexeu muito no meu
orgulho.
Já fui pra incêndio, já atendi na
ambulância, já vi gente morta. Já salvei gato, já mergulhei, já trabalhei em
aeroporto. Já acordei de madrugada, já fiz vistoria de moto, já cavei
soterramento.
E já trabalhei no rancho.
E ah, pra finalizar, no último
dia de rancheiro, fiz meu exame no DETRAN, para a carteira D. Nunca fiz uma
baliza de ônibus tão boa quanto aquela.
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