Hoje o Google me surpreendeu. Dando um intervalo nos doodles temáticos da Copa do Mundo na Rússia, a gigante da internet homenageia hoje, em sua página inicial, o centenário de nascimento do artista brasileiro Athos Bulcão, conhecido principalmente pelos seus azulejos, que decoram boa parte da capital Brasília.
Conheci o artista e sua obra ano passado, num concurso de contos temático. Na verdade, era um desafio literário: os organizadores davam três elementos muito distintos e o concorrente tinha que escrever um conto coerente com estes itens. Na primeira fase que participei, um dos elementos exigidos no conto era um azulejo de Athos Bulcão. Fiz a pesquisa sobre este grande artista e bolei uma história completamente surtada, numa inspiração descarada dos contos de horros de Lovecraft. Minha mistura de alhos com bugalhos, evidentemente, não me classificou para a próxima fase, mas até hoje me divirto com a trama absurda que eu criei, e que compartilho agora, com vocês:
GEÔMETRA
Quando
se lê num livro de história sobre um grande evento, algo que
definiu ou remodelou vidas - seja de maneira gloriosa ou dantesca -
têm-se a impressão de que todas as pessoas contemporâneas ao fato
tinham ciência do acontecimento e de sua relevância. Mas com
franqueza, poucos têm acesso à verdade enquanto ela acontece e,
diversas vezes, episódios importantíssimos passam despercebidos
para o ser humano incauto, episódios que, eventualmente, são
decisivos para a própria humanidade. Esse era o sentimento que
assombrava Gunther, enquanto ele contemplava, hipnotizado, as
elegantes curvas e o imponente disco de um relógio solar, dentro de
um gigantesco parque da capital brasileira, lugar onde, em
circunstâncias normais, nunca imaginaria visitar.
Gunther
arrepiou-se ao pensar novamente no que o trouxera ali. Era outono no
hemisfério sul e ele aguardava, com a melhor paciência que dispunha
, o horário exato quando o sol não mais marcaria, com sua sombra,
as horas diurnas. Devia ser um valor exato, e por isso, toda sua
atenção voltava-se ao relógio de pulso e a sombra do portentoso
monumento de quase seis metros de altura.
Sua
empreitada que o levou finalmente até Brasília começou sete anos
antes, quando na graduação em arqueologia, na cidade de Berlim,
conheceu um estranho americano chamado Howard. Dono de ideias
excêntricas, era um homem de compleição assombrada e depressiva,
que falava constantemente em ídolos antigos, civilizações
pré-diluvianas e monstruosidades além da imaginação. A mente
racional de Gunther fazia troça e se divertia de início com as
estranhas conversas do acadêmico estrangeiro, até que aos poucos,
insidiosamente, uma série de coincidências começou a permear a
vida do estudante, uma conclusão reforçada pela enorme obsessão
com números e a inclinação para a matemática. Gunther, em prazo
de meses, viu-se envolvido num mundo de ocultismo, onde a realidade
sensível era apenas uma fina pele de um órgão muito maior, de
realidades múltiplas que formavam um corpo imenso, que a maioria dos
ignorantes humanos desconhecia. Teve contato com uma história muito
anterior de o primeiro ser humano racional caminhar na Terra;
aprendeu uma macabra matemática não cartesiana e descobriu que
através de posições estelares, desenhos de alfarrábios e padrões
supostamente aleatórios em monumentos e obras, escondia-se mensagens
e verdades terríveis, que podiam destruir a sanidade de uma pessoa
comum, como um espelho arremessado ao chão.
E foi
através desses cálculos demoníacos, executados somente pela mente
excessivamente reta e disciplinada de Gunther, que o mesmo descobriu,
junto com o amigo Howard, que uma anomalia estava em desenvolvimento
no mundo. Algo misterioso e ancestral estava ganhando força e eles
podiam sentir, pelo crescente número de histórias fantasmagóricas
de aparições, fenômenos anormais, surgimento de cultos medonhos e
toda sorte de eventos insuspeitos considerados pelos céticos como
estupidez. Mas para olhos treinados, como os de Gunther, isso era o
gatilho para uma reação. Ele e Howard sabiam que um grande perigo
se aproximava.
Através
do livro de um árabe louco, que Howard copiou letra por letra,
descobriram que a Terra possui pilares, locais sagrados que garantiam
sua proteção contra ameaças monstruosas que se escondem nos
“mundos entre os mundos”. Esses locais, disfarçados de maneira
totalmente prosaica, garantem que as portas desses mundos permaneçam
fechadas. Mas uma delas parecia na iminência de se quebrar. Isolado
três dias, enredado na tarefa de calcular posições astronômicas e
traduzir textos ancestrais, Gunther desvendou que um desses pilares
estava na América do Sul, na capital do Brasil, cuja proteção
advinha de dois monumentos construídos com uma geometria divina,
milimetricamente planejados para sustentar e proteger a realidade
como era: o relógio de sol e as paradas de descanso, ambas no Parque
da Cidade de Brasilia.
O
relógio foi cuidadosamente calculado por Marcomede Rangel Nunes, com
o projeto do lendário arquiteto Oscar Niemeyer. Ambos sabiam o que
estavam fazendo e guardaram esse segredo. Mas com maior mérito,
estavam os azulejos do artista Athos Bulcão, que decoravam as
paradas de descanso do parque. Os padrões pretos em fundo branco,
entremeados com azulejos brancos de forma aparentemente aleatória,
escondiam uma lógica, dificílima, mas não impossível, de ser
quebrada. Com o conveniente disfarce de turista, Gunther se aventurou
sozinho no Brasil, enquanto Howard seguiu para a Romênia, atrás de
outra misteriosa pista. Gunther estudou com afinco o português. Para
um homem como ele, cuja disciplina era quase patológica, dois meses
foram suficientes para dominar o complicado idioma estrangeiro.
E após
semanas disfarçado de viajante, analisando cada parada de descanso
do imenso parque, descobriu que o padrão dos azulejos apresentava
uma falha, uma pequena falha, que provocava anomalias na sutil e
segura realidade. Analisando as fotos dos azulejos de Bulcão,
percebeu que quatro deles deviam ter os desenhos apontados para outra
direção. Gunther sabia que se substituísse aqueles azulejos, o
mundo como conhecia estaria novamente incólume. Disfarçadamente,
moldou e desenhou com perfeição quatro novos azulejos como deveriam
ser e planejou, na calada da noite, profanar a obra de Athos Bulcão
para um bem maior. Quebraria os azulejos da posição errada e
assentaria os corretos. Salvaria o mundo e beberia, anônimo, a
glória e o alívio.
Na
fatídica noite, às 18 horas, a luz abandonou o relógio solar e o
crepúsculo se amansou. Gunther anotou com cuidado o horário e,
através de mais um cálculo enlouquecedor, descobriu a hora certa de
substituir os azulejos errados. Escondido entre árvores, despistando
guardas, esperou uma eternidade até a madrugada tomar conta da área
verde e do posto de descanso com a obra de Athos Bulcão. No horário
designado, quebrou, com enorme pesar, os azulejos específicos e
colocou, em seu lugar, seus azulejos falsos, rezando para que a
tramoia não fosse descoberta. Ao concluir o último azulejo, sentiu
a temperatura cair. Deveria estar aliviado, mas uma angústia o
invadiu. Ouviu uma quase inaudível respiração e, tomado de horror,
virou-se, em tempo de testemunhar algo que, se sobrevivesse,
estraçalharia sua sanidade: o outrora amigo Howard, sorrindo
malignamente e com os olhos brilhando num verde luminoso, e dizendo
numa voz inumana:
-
OBRIGADO, GUNTHER, NUNCA TERIA CONSEGUIDO ABRI-LO SOZINHO!
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