Sou um consumidor compulsivo de
matéria cultural (tanto útil quanto inútil). Leio em ritmo de tartaruga, mas
diariamente; gosto de cinema (preferencialmente nas segundas e terças-feiras),
frequento as duas últimas videolocadoras que sobreviveram ao teste do tempo em
minha cidade, ouço música sempre que saio de casa e jogo ocasionalmente
videogame. Jung provavelmente diria que é um paliativo para o tédio terrível da
vida moderna. Mas até que tem funcionado bem.
Entre a montanha de material
lido, assistido, ouvido e jogado, há sempre alguma coisa que se destaca, mas de
maneira especial, diferente. Mais do que atingir com louvor o quesito diversão,
certas experiências marcam, fascinam e chocam. Felizmente, vez ou outra caio de
encontro com um filme que me dá um nó na garganta, um livro cujo final me deixa
atônito, uma música que me arrepia e até um jogo que me faz parar pra pensar. É
uma experiência muito particular: talvez o que me marque profundamente possa
não fazer diferença alguma para outra pessoa. Mas ainda assim, compartilho
quatro experiências distintas que me despertaram de tudo, menos indiferença. Junto
com elas, algumas menções honrosas de outras obras do gênero, que também
carregam um poder, em minha opinião, que vai além do óbvio.
Filme – A Ilha da Aventura
(Standing Up)
Lançado no Brasil diretamente
para DVD e Blu Ray, A Ilha da Aventura conta a história de um menino e uma
menina, que num acampamento de verão são humilhados, despidos e largados numa
ilhota à noite. A menina, envergonhada e com medo, é totalmente acuada,
enquanto o garoto é mais inteligente e desenrolado (essa esperteza é explicada
adiante no filme). Decididos a não voltarem para o acampamento e sofrerem mais
humilhações, resolvem fugir para as suas casas, na melhor vibe de filmes infanto-juvenis dos anos 80.
O mérito de A Ilha da Aventura está
na sua simplicidade. É um filme bonito, singelo, direto. Em nenhum momento há
um perigo real, algo terrível que persegue os protagonistas; o foco é a fuga
pueril e a amizade que se desenvolve entre ambos. Há certa tensão afetiva entre
os guris – que são pré-adolescentes – e ela é explorada, acho eu, num limite
certo: nem tão inocente, nem vulgar. Parece algo muito franco e mais crível do
que estamos acostumados a ver.
A história é fechada e se
completa, sem brecha para continuações. Quando terminei, tive uma sensação boa,
algo que me lembrou muito Ponte para
Terabítia (um dos únicos filmes que eu admito que quase chorei). Mas o que
me fez incluir justo esse filme na lista foi a sensação particularmente
perturbadora que tive ao assisti-lo. Algo naquela história, que não sei bem
precisar, escavou uma coisa muito profunda na minha cabeça, uma lembrança
adormecida, acho que há mais de quinze anos, quando, saindo da meninice,
comecei a conturbada jornada de adolescência. Foi intenso e muito distinto. Eu
realmente lembrei-me da minha infância, a senti por alguns minutos novamente, e
a sensação esquisita que isso despertou foi o motivo pelo qual respeito esse
filme, que não teve muito reconhecimento, mas vale a hora e meia – para quem
aguenta algo além de super heróis, explosões e vampiros galãs.
Menções honrosas: Cruzada
(Kingdom of Heaven), O Nevoeiro (The Mist), O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain).
Livro – Guerra Dentro da Gente
(Paulo Leminski)
Em 2009, participei de uma
campanha de arrecadação de livros para uma escola. Guardei em casa o material
coletado e numa tarde ensolarada, separei todos os livros, avaliando suas
condições e pertinência para doação. No meio deles, encontrei um livro com
aparência de novo, belas ilustrações e um nome bem conhecido entre os leitores
paranaenses: o curitibano Paulo Leminski. Curioso, iniciei a leitura do livro,
só por curiosidade, e durante as duas horas seguintes fiquei absorvido até a
última página.
Guerra Dentro da Gente parece uma fábula oriental, muito voltada ao
budismo: conta a história de Baita, um menino que um dia, numa ponte, é
convidado por um velho a deixar tudo e aprender a arte da guerra. Iludido em
sua imaginação de criança, foge e passa por situações das mais diversas: vira
escravo, artista circense, pirata e treinador de cachorros. Vê o que tem de
pior nas pessoas e aos poucos vai moldando em si um espírito de guerreiro, uma
vida inteira aprendendo o que é a arte da guerra, que o misterioso velho lhe
prometera.
O livro é considerado a única
obra infanto-juvenil escrita por Leminski, mas acho essa classificação muito
insidiosa. Esse livro não é infantil, de maneira alguma. Pode até ser lido por
um infante, mas a quantidade de referências, lições escondidas e analogias, faz
dele uma leitura adequada para adultos, uma fábula com coisas muito além do
óbvio.
Li-o cerca de um ano antes de
virar bombeiro, e misteriosamente esse livro me acompanhou nos duros dias de
vida nova, em Maringá, como um mito pessoal, um manual, um guia. Comprei uma
edição para mim nessa época e tempos depois a doei onde achei que poderia ser
útil. Arrependido, comprei mais uma edição, que hoje guardo com zelo na minha
bibliotequinha pessoal.
Também me é misterioso o porquê
um livro tão curto, lido de supetão, ter me deixado tão perplexo. A sensação é
que ele me procurou por muito tempo pra me dizer algo que deveria ter aprendido
há anos.
Menções honrosas: Contato (Carl
Sagan); A Jornada do Herói: vida e obra de Joseph Campbell (Phil Cousineau); a história
do Cavaleiro da Árvore que Ri (um capítulo específico do livro “As Crônicas de
Gelo e Fogo: Tormenta de Espadas” de George R.R. Martin)
Jogo – The Last of Us
Há quem considere os jogos de videogame
uma forma de arte. Pode ser, considerando que os gráficos, as músicas e o
enredo são cada vez mais esmerados.
Sou um jogador ocasional, o que
significa que gosto da coisa sem torná-la um vício. Isso significa seguir
certas regras, como não jogar durante o dia e, nas noites que decido brincar,
não ultrapassar certo horário, em favor de boas noites de sono e produtividade.
Assim, quando decido jogar determinado game, levo até meses para concluir o
dito cujo. Também não gosto de alta dificuldade: videogame para mim é um meio
de diversão; se for para se estressar, já basta vida real.
O jogo que listo aqui foi
concluído no final de 2014, numa quinta-feira, durante minhas férias. Lembro
bem da data, pois fiquei uns bons 20 minutos segurando o controle, enquanto os
créditos subiam na tela, pensando: “o que diabos acabei de ver aqui?”
The Last of Us, produzido pela
Naughty Dog, conta a história de Joel,
um homem de meia-idade, amargurado e que vive num mundo pós apocalíptico, que
vinte anos atrás foi tomado por uma terrível praga: um fungo, que transforma as
pessoas em um tipo de zumbi. Parece exatamente a mesma porcaria que vemos aos
montes por aí, em filmes B, jogos de tiroteio desenfreado e afins, mas não é. O
foco é bem diferente.
Joel recebe a missão de escoltar
uma menina, chamada Ellie, para o outro lado do país, entregando-a para um
grupo paramilitar chamado Vagalumes. Ellie é imune aos esporos nocivos, o que
pode indicar uma possível cura para a doença. De início, o relacionamento entre
os dois é péssimo, mas à medida que o tempo passa, e eles enfrentam juntos os
horrores dessa viagem, começam a desenvolver uma proximidade, que vai também
ganhando a simpatia do jogador.
O jogo é tecnicamente perfeito:
gráficos bonitos, boa jogabilidade, música memorável, dificuldade no limite
certo, com ação e tensão crescentes. Mas o maior valor de The Last of Us é sua
história: contada de forma brilhante, em pouco tempo a dupla de protagonistas
ganha a simpatia dos jogadores, com sua a relação pai e filha, que surge
timidamente e se reforça, mesmo de maneira conturbada, durante a jornada. O
mundo hediondo que eles enfrentam não é composto apenas pelos “zumbis
cogumelos”, mas em grande parte por outros humanos, que perderam o limite da
decência e se entregaram a selvageria. Isso é mostrado de forma bem cruel em
alguns momentos, fazendo inveja a grandes produções de Hollywood, a meu
ver. Por fim, a afetividade paterna de
Joel e Ellie ganha contornos cada vez mais fortes até o final, que só posso
definir como um misto de acalentador e terrível.
Jogar esse negócio foi uma experiência
interessante. O roteirista merece uma reverência, pois atinge um nível
emocional que mesmo alguns filmes não conseguem. Até hoje lembro da história de
Joel e Ellie e me pergunto se algum dia conseguirei escrever algo tão bom
quanto.
Menções honrosas: ICO; Shadow of
the Colossus; Chrono Trigger
Música – O Guarani (executado
pela Orquestra Sinfônica do Paraná)
Com exceção de pagode, que
simplesmente não consigo gostar, ouço quase de tudo – de Lynyrd Skynyrd à Justin Bieber, de trilha sonora de filmes à Lucas Lucco – mas algo me
pressionava até 2015: tinha uma imensa vontade de assistir uma orquestra
sinfônica ao vivo. Decidido a transformar o sonho em meta, enviei um e-mail à
Orquestra Sinfônica do Paraná, que prontamente me respondeu, enviando seu calendário
de apresentações durante o ano. Animado, planejei a viagem até Curitiba, joguei
a família dentro do Átila (o Uno), e fomos até a capital.
Ouvir música clássica ao vivo tem
um poder que atinge mesmo quem não entende de música clássica. Foi de arrepiar.
Conseguia ouvir cada movimento sutil de corda da harpa, cada sopro de oboé
mesmo longe do palco, e cada vez que o maestro perfazia um gesto enérgico, e a
orquestra explodia num som conjunto, era como se o coração saltasse da boca.
Por Deus do céu, como fui esperar tantos anos até uma experiência dessas? Valeu
cada litro de gasolina, cada centavo dos extorsivos (e infinitos) pedágios,
cada minutinho esperando o trânsito da cidade se arrastar.
Há alguns meses, não satisfeito,
fui ao concerto de estréia da temporada 2016, dessa vez sozinho, numa
quarta-feira, recém saído do serviço, em mais uma de minhas experiências
intimistas de moto. Ouvi o Guarani, cuja introdução emblemática me lembra muito
uma antiga propaganda política, embora isso não dissolva seu encanto. Conversar
com os músicos após a apresentação e ser atenciosamente bem tratado é uma
cereja do bolo – mesmo com a maioria do público decentemente trajada e eu na
velha e surrada composição: “mochila, jaqueta de viagem, calça militar, bota e pochete de
perna” parecendo o Mad Max...
Menções honrosas: I was Born for This (Journey
Soundtrack); The Islander (Nightwish); Ori Lost in the Storm (Gareth Coker e
Aeralie Brighton)
Até a próxima.
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