terça-feira, 11 de outubro de 2016

Pequenas experiências "muito além"

Sou um consumidor compulsivo de matéria cultural (tanto útil quanto inútil). Leio em ritmo de tartaruga, mas diariamente; gosto de cinema (preferencialmente nas segundas e terças-feiras), frequento as duas últimas videolocadoras que sobreviveram ao teste do tempo em minha cidade, ouço música sempre que saio de casa e jogo ocasionalmente videogame. Jung provavelmente diria que é um paliativo para o tédio terrível da vida moderna. Mas até que tem funcionado bem.
Entre a montanha de material lido, assistido, ouvido e jogado, há sempre alguma coisa que se destaca, mas de maneira especial, diferente. Mais do que atingir com louvor o quesito diversão, certas experiências marcam, fascinam e chocam. Felizmente, vez ou outra caio de encontro com um filme que me dá um nó na garganta, um livro cujo final me deixa atônito, uma música que me arrepia e até um jogo que me faz parar pra pensar. É uma experiência muito particular: talvez o que me marque profundamente possa não fazer diferença alguma para outra pessoa. Mas ainda assim, compartilho quatro experiências distintas que me despertaram de tudo, menos indiferença. Junto com elas, algumas menções honrosas de outras obras do gênero, que também carregam um poder, em minha opinião, que vai além do óbvio.

Filme – A Ilha da Aventura (Standing Up)
Lançado no Brasil diretamente para DVD e Blu Ray, A Ilha da Aventura conta a história de um menino e uma menina, que num acampamento de verão são humilhados, despidos e largados numa ilhota à noite. A menina, envergonhada e com medo, é totalmente acuada, enquanto o garoto é mais inteligente e desenrolado (essa esperteza é explicada adiante no filme). Decididos a não voltarem para o acampamento e sofrerem mais humilhações, resolvem fugir para as suas casas, na melhor vibe de filmes infanto-juvenis dos anos 80.
O mérito de A Ilha da Aventura está na sua simplicidade. É um filme bonito, singelo, direto. Em nenhum momento há um perigo real, algo terrível que persegue os protagonistas; o foco é a fuga pueril e a amizade que se desenvolve entre ambos. Há certa tensão afetiva entre os guris – que são pré-adolescentes – e ela é explorada, acho eu, num limite certo: nem tão inocente, nem vulgar. Parece algo muito franco e mais crível do que estamos acostumados a ver.
A história é fechada e se completa, sem brecha para continuações. Quando terminei, tive uma sensação boa, algo que me lembrou muito Ponte para Terabítia (um dos únicos filmes que eu admito que quase chorei). Mas o que me fez incluir justo esse filme na lista foi a sensação particularmente perturbadora que tive ao assisti-lo. Algo naquela história, que não sei bem precisar, escavou uma coisa muito profunda na minha cabeça, uma lembrança adormecida, acho que há mais de quinze anos, quando, saindo da meninice, comecei a conturbada jornada de adolescência. Foi intenso e muito distinto. Eu realmente lembrei-me da minha infância, a senti por alguns minutos novamente, e a sensação esquisita que isso despertou foi o motivo pelo qual respeito esse filme, que não teve muito reconhecimento, mas vale a hora e meia – para quem aguenta algo além de super heróis, explosões e vampiros galãs.
Menções honrosas: Cruzada (Kingdom of Heaven), O Nevoeiro (The Mist), O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain).

Livro – Guerra Dentro da Gente (Paulo Leminski)
Em 2009, participei de uma campanha de arrecadação de livros para uma escola. Guardei em casa o material coletado e numa tarde ensolarada, separei todos os livros, avaliando suas condições e pertinência para doação. No meio deles, encontrei um livro com aparência de novo, belas ilustrações e um nome bem conhecido entre os leitores paranaenses: o curitibano Paulo Leminski. Curioso, iniciei a leitura do livro, só por curiosidade, e durante as duas horas seguintes fiquei absorvido até a última página.
Guerra Dentro da Gente parece uma fábula oriental, muito voltada ao budismo: conta a história de Baita, um menino que um dia, numa ponte, é convidado por um velho a deixar tudo e aprender a arte da guerra. Iludido em sua imaginação de criança, foge e passa por situações das mais diversas: vira escravo, artista circense, pirata e treinador de cachorros. Vê o que tem de pior nas pessoas e aos poucos vai moldando em si um espírito de guerreiro, uma vida inteira aprendendo o que é a arte da guerra, que o misterioso velho lhe prometera.
O livro é considerado a única obra infanto-juvenil escrita por Leminski, mas acho essa classificação muito insidiosa. Esse livro não é infantil, de maneira alguma. Pode até ser lido por um infante, mas a quantidade de referências, lições escondidas e analogias, faz dele uma leitura adequada para adultos, uma fábula com coisas muito além do óbvio.
Li-o cerca de um ano antes de virar bombeiro, e misteriosamente esse livro me acompanhou nos duros dias de vida nova, em Maringá, como um mito pessoal, um manual, um guia. Comprei uma edição para mim nessa época e tempos depois a doei onde achei que poderia ser útil. Arrependido, comprei mais uma edição, que hoje guardo com zelo na minha bibliotequinha pessoal.
Também me é misterioso o porquê um livro tão curto, lido de supetão, ter me deixado tão perplexo. A sensação é que ele me procurou por muito tempo pra me dizer algo que deveria ter aprendido há anos.

Menções honrosas: Contato (Carl Sagan); A Jornada do Herói: vida e obra de Joseph Campbell (Phil Cousineau); a história do Cavaleiro da Árvore que Ri (um capítulo específico do livro “As Crônicas de Gelo e Fogo: Tormenta de Espadas” de George R.R. Martin)

Jogo – The Last of Us
Há quem considere os jogos de videogame uma forma de arte. Pode ser, considerando que os gráficos, as músicas e o enredo são cada vez mais esmerados.
Sou um jogador ocasional, o que significa que gosto da coisa sem torná-la um vício. Isso significa seguir certas regras, como não jogar durante o dia e, nas noites que decido brincar, não ultrapassar certo horário, em favor de boas noites de sono e produtividade. Assim, quando decido jogar determinado game, levo até meses para concluir o dito cujo. Também não gosto de alta dificuldade: videogame para mim é um meio de diversão; se for para se estressar, já basta vida real.
O jogo que listo aqui foi concluído no final de 2014, numa quinta-feira, durante minhas férias. Lembro bem da data, pois fiquei uns bons 20 minutos segurando o controle, enquanto os créditos subiam na tela, pensando: “o que diabos acabei de ver aqui?”
The Last of Us, produzido pela Naughty Dog,  conta a história de Joel, um homem de meia-idade, amargurado e que vive num mundo pós apocalíptico, que vinte anos atrás foi tomado por uma terrível praga: um fungo, que transforma as pessoas em um tipo de zumbi. Parece exatamente a mesma porcaria que vemos aos montes por aí, em filmes B, jogos de tiroteio desenfreado e afins, mas não é. O foco é bem diferente.
Joel recebe a missão de escoltar uma menina, chamada Ellie, para o outro lado do país, entregando-a para um grupo paramilitar chamado Vagalumes. Ellie é imune aos esporos nocivos, o que pode indicar uma possível cura para a doença. De início, o relacionamento entre os dois é péssimo, mas à medida que o tempo passa, e eles enfrentam juntos os horrores dessa viagem, começam a desenvolver uma proximidade, que vai também ganhando a simpatia do jogador.
O jogo é tecnicamente perfeito: gráficos bonitos, boa jogabilidade, música memorável, dificuldade no limite certo, com ação e tensão crescentes. Mas o maior valor de The Last of Us é sua história: contada de forma brilhante, em pouco tempo a dupla de protagonistas ganha a simpatia dos jogadores, com sua a relação pai e filha, que surge timidamente e se reforça, mesmo de maneira conturbada, durante a jornada. O mundo hediondo que eles enfrentam não é composto apenas pelos “zumbis cogumelos”, mas em grande parte por outros humanos, que perderam o limite da decência e se entregaram a selvageria. Isso é mostrado de forma bem cruel em alguns momentos, fazendo inveja a grandes produções de Hollywood, a meu ver.  Por fim, a afetividade paterna de Joel e Ellie ganha contornos cada vez mais fortes até o final, que só posso definir como um misto de acalentador e terrível.
Jogar esse negócio foi uma experiência interessante. O roteirista merece uma reverência, pois atinge um nível emocional que mesmo alguns filmes não conseguem. Até hoje lembro da história de Joel e Ellie e me pergunto se algum dia conseguirei escrever algo tão bom quanto.

Menções honrosas: ICO; Shadow of the Colossus; Chrono Trigger

Música – O Guarani (executado pela Orquestra Sinfônica do Paraná)

Com exceção de pagode, que simplesmente não consigo gostar, ouço quase de tudo – de Lynyrd Skynyrd à Justin Bieber, de trilha sonora de filmes à Lucas Lucco – mas algo me pressionava até 2015: tinha uma imensa vontade de assistir uma orquestra sinfônica ao vivo. Decidido a transformar o sonho em meta, enviei um e-mail à Orquestra Sinfônica do Paraná, que prontamente me respondeu, enviando seu calendário de apresentações durante o ano. Animado, planejei a viagem até Curitiba, joguei a família dentro do Átila (o Uno), e fomos até a capital.
Ouvir música clássica ao vivo tem um poder que atinge mesmo quem não entende de música clássica. Foi de arrepiar. Conseguia ouvir cada movimento sutil de corda da harpa, cada sopro de oboé mesmo longe do palco, e cada vez que o maestro perfazia um gesto enérgico, e a orquestra explodia num som conjunto, era como se o coração saltasse da boca. Por Deus do céu, como fui esperar tantos anos até uma experiência dessas? Valeu cada litro de gasolina, cada centavo dos extorsivos (e infinitos) pedágios, cada minutinho esperando o trânsito da cidade se arrastar.
Há alguns meses, não satisfeito, fui ao concerto de estréia da temporada 2016, dessa vez sozinho, numa quarta-feira, recém saído do serviço, em mais uma de minhas experiências intimistas de moto. Ouvi o Guarani, cuja introdução emblemática me lembra muito uma antiga propaganda política, embora isso não dissolva seu encanto. Conversar com os músicos após a apresentação e ser atenciosamente bem tratado é uma cereja do bolo – mesmo com a maioria do público decentemente trajada e eu na velha e surrada composição: “mochila, jaqueta de viagem, calça militar, bota e pochete de perna” parecendo o Mad Max...

Menções honrosas: I was Born for This (Journey Soundtrack); The Islander (Nightwish); Ori Lost in the Storm (Gareth Coker e Aeralie Brighton)


Até a próxima.

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