quarta-feira, 10 de julho de 2013

Kiv" . . . . . . . . # 03


Durante muito tempo Kiv" permaneceu adormecido na umbra. Até que resolveu dar sinais que ainda vivia. E resolveu escrever um pouco. O resultado está abaixo. Prepare a insulina.
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Café e livro novo

Na época que eu era estagiário e mal tinha dinheiro pra pagar a manutenção da bicicleta, tinha o hábito de uma vez por mês (ou até duas) visitar um determinado café na cidade, que eu achava muito estiloso. Paredes de madeira envernizada , uns cacarecos bem antigos, como um toca-discos, máquina de datilografar, LP’s por toda a parede e um cheiro de baunilha e algo indistinguível, que eu só conseguia me referir como cheiro de tempestade chegando.
Nessas visitas, com o pouco dinheiro que tinha, me restringia a uma xícara pequena de moca, e de vez em quando, um sorvete de café. Ficava sonhando em marcar um encontro entre leitores naquele lugar, para fazer como eu via nos livros e filmes: tomar café e discutir literatura. Eu não era muito culto e não lia coisas complexas, era apenas um leitor de ficções infanto-juvenis com mania de poeta. Infelizmente, a vontade em organizar um evento desses logo passava, pois eu não conhecia ninguém, não dispunha de internet (coisa não tão difundida ainda) e me faltava boa vontade de fazer aquilo acontecer.
As coisas aplainaram quando fui embora da minha zona de conforto. Durante uns anos rodei o Estado e muitas das prioridades, pessoas e manias que eu tinha foram substituídas por novos equivalentes. Amadureci um pouco, pois morar sozinho sempre nos ensina muita coisa, mas tinha saudades do velho lar. E por vários movimentos do titereiro do destino, fui convocado a mais uma vez voltar para minha cidade natal. Um lugar velho para um morador renovado.
E nessa volta ao berço, esqueci completamente do tal café, o que até soou estranho, pois nessa fase da vida já estava com uma condição financeira mais confortável. Não era rico, mas poderia desfrutar de uma xícara maior de moca. E nesses dias, quando corria no parque e admirava as cerejeiras que tinham florescido na mesma semana, vi um panfleto no chão, já umedecido, deste café que eu tanto gostava quando mais novo. Senti que o titereiro estava me conduzindo para lá e resolvi, no sábado seguinte, degustar alguma coisa e ver o que havia mudado.
Dito e feito. Saí do curso de dança de salão que eu começara há alguns meses e fui para o café, sozinho. Não tinha simplesmente ninguém para convidar, e chamar algum amigo soaria muito esquisito. Até porque, estava apenas interessado num momento particular, de tomar café e relembrar um lugar que foi um pequeno refúgio na época em que meus sonhos eram mais intensos e menos racionais. De certa forma, sem querer ser sentimentalista, era uma época onde eu era muito mais apaixonado. O pragmatismo nos torna eficientes, o que é bom, mas nos rouba algumas coisas em troca, o que nem sempre é bom.
Já no café, fui atendido por um rapaz que eu sinceramente não lembro se trabalhava por lá naquela época. Pedi um moca, mas na xícara maior. “Que coisa memorável”, pensei, rindo interiormente. “Tenho que voltar a vir aqui mais vezes”. Rapidamente fui servido e iniciei meu ritual de degustação, coisa que eu provavelmente adotei vendo algum enólogo e adaptei para café, haja vista eu não gostar de álcool.
Olhei em volta e vi mais algumas pessoas. Uns três casais. Um dividia uma torta e conversava dando risada sobre algo que julguei ser ameno. Outro se abraçava calorosamente e já tinham terminado suas xícaras. Cochichavam sem se importar muito com o mundo em volta. E um outro, mais ao fundo, normais como qualquer dupla de pessoas coadjuvantes de alguma cena de filme. Nisso, uma garota entrou na cafeteria, sem eu perceber inicialmente, e foi até o balcão. Apoiou-se com uma das pernas no chão, sentou no banquinho redondo e deixou a outra perna balançando levemente ao ar. Pediu um cappuccino para o mesmo rapaz que me atendeu e deu um sorriso muito bonito. Engraçado como tem pessoas que sorriem de forma mais bonita que outras. Conseguem mostrar os dentes parecendo naturais. Era o caso daquela menina castanho claro, olhos no mesmo tom, cachecol preto de lã, um casaco cinza escuro e botas cano médio de camurça, com cadarços delicadinhos. Carregava uma cicatriz no dorso da mão direita, o que deduzi ser uma queimadura longínqua, e usava óculos de armação preta com pequenos detalhes florais em prata. Após apoiar a bolsa em cima do balcão, sacou um celular e ficou ali, mexendo freneticamente no aparelho, alheia ao restante. Ás vezes olho para esse povo que vive com a cara enfuçada num smartphone e não deixo de achar isso de certa forma decepcionante. Mas não vou começar a divagar sobre isso, pois é muito chato da minha parte defender tanto conservadorismo. Mas enfim, como se tratava de uma garota tão bonita, obvio que me distraí olhando para ela discretamente enquanto bebericava meu moca fumegante. Menos de um minuto depois o atendente lhe serviu uma xícara branca com cappuccino e canela em pó. Ela, então, guardou o celular na bolsa e o que ela fez em seguida ficou na minha cabeça o resto do dia: pegou a base da xícara, mesmo quente, com as pontas dos dedos de ambas as mãos. Girou a xícara numa volta completa e levou-a até o lábio superior. Aproximou a xícara nas narinas e, fechando os olhos, deu uma puxada de ar que chegou a rodopiar as nuvens de vapor em torno de seu rosto. Satisfeita com o aroma do café servido, abriu os olhos, castanhos, brilhantes e satisfeitos, e mesmo com as lentes dos óculos parcialmente embaçadas, começou a bebericar o conteúdo fumegante da sua xícara.
“Que cena linda” pensei nos segundos eternos em que parei totalmente pra assistir. O ritual tão elaborado pra se beber um cappuccino me lembrou de leve todas as vezes que avaliava um livro e, além de ler sua resenha e admirar sua capa, o abria no meio e cheirava com vontade aquelas páginas novas.
Voltei a imaginar que futuro poderia ter se me apresentasse de alguma maneira. Se de repente esse café pudesse ser o início tão icônico daquele tipo de filme “boy meets girl”, com direito a todos os clichês do tipo: parques no outono, literatura e uma historia leve, parecida com uma tardezinha de sábado.
Esse tipo de pensamento era bem comum quando era mais novo. Quando ia ao mesmo café na época que tinha dinheiro apenas para a xícara pequena. Senti um desconforto, pois via a minha frente um estereótipo, uma idealização de garota que eu mesmo sabia ser besta. Eu deduzia toda uma personalidade, um caráter e um futuro em cima apenas de uma aparência física tão linda e um pequeno ritual envolvendo café.
Estranho notar que tenho vergonha do que eu sentia tão forte até pouco tempo atrás.
Mas eu sei que não teria futuro algum. Ela vai terminar esse café, vai pagar no caixa, olhar o seu smartphone mais uma vez e sair para qualquer rumo, rever seu provável noivo ou namorado. E eu aceito a sina, pois aprendi a decifrá-la nesse meio tempo que minha vida era a estrada. Essas histórias de “boy meets girl” não existem. Não comigo. Em hipótese alguma.  Pois desaprendi a conhecer e conversar com as mulheres que desejava. E a medida que as palavras nunca saíram da boca, mais fortes elas se tornaram no papel. E eu não sei até quando isso vai continuar, pois ao invés de melhorar, a cada dia eu pioro.  A cada morte de um silêncio nascia um livro meu. E aquelas musas, que na adolescência eram meu sorriso, pouco a pouco se tornaram minha maldição.

Garotas com cheiro de café e livro novo...
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Um dia, quem sabe, essa história continue em "Tempestades e Bicicletas".




2 comentários:

Paty Marangoni disse...

Ora, ora, temos um escritor! Sim, senhor!! Tamanha a precisão dos detalhes eu me senti dentro daquele café sentindo o cheiro do capuccino da moça!
Lindeza de texto, guerreiro! Parabéns!!!

Fábio B. Lara disse...

Obrigado pela leitura, Paty!!! Fico feliz que tenha sentido o aroma desse cappuccino! rs