Em meados de 1950, Joseph
Campbell publicou o livro “O herói de mil faces”, onde comparava mitos, lendas
e religiões do mundo inteiro, evidenciando suas semelhanças e dissecando-as em
uma série de passos que chamou de “monomito” – o mito único. Assim, de acordo
com sua pesquisa, todo herói passa por situações bem parecidas, cujo mote
básico é sair de um mundo comum, embarcar em uma aventura, superar uma grande
provação e retornar, transformado. Seu trabalho influenciou o cinema e a
literatura desde então, sendo facilmente detectável em obras como Guerra nas
Estrelas, Matrix, Harry Potter, entre outros.
Um fato curioso, entretanto, é
que nos mitos antigos o herói geralmente é um homem, e a mulher quase sempre
é representada por um aspecto feminino superior: uma deusa, uma grande mãe ou
sacerdotisa, que auxilia, e eventualmente desafia o herói. Há alguns poucos
exemplos de mulheres protagonistas de seus próprios mitos – Perséfone, Alceste,
Anesidora – mas elas são minoria e infelizmente, pouco conhecidas.
Mas no post de hoje – que marco
como meu retorno aos escritos deste empoeirado blog – quero mencionar algumas
heroínas modernas da sétima arte. Mulheres que passaram pela jornada do herói
em seus respectivos filmes, e que mostraram algum aspecto de caráter que me
chamou a atenção. A lista é pequena – muitas outras heroínas do cinema poderiam
ser mencionadas – mas acredito que o grupo é diverso e segue as minhas
preferências cinematográficas.
ALERTA: SOLTO SPOILERS DE TODOS
OS FILMES MENCIONADOS, INCLUSIVE EVENTUAIS REVIRAVOLTAS.
Disparado
meu filme favorito de 2015, “Mad Max: Estrada da Fúria”, pode ser interpretado
(dentro da psicologia, em minha opinião pessoal) de duas maneiras: como uma
reconciliação de um homem com sua anima (Max
se tornando mais humano com a convivência com cada uma das mulheres do filme),
e como uma jornada de herói vivida pela Imperatriz Furiosa, interpretada por
Charlize Theron.
Nesta segunda interpretação,
pode-se ver a clássica história da pessoa amargurada, que tenta compensar seu
passado de erros com uma atitude de redenção. Furiosa, durante muito tempo
serva do vilão/ditador Immortan Joe, resolve se redimir fugindo com as noivas
do mesmo, buscando um lugar chamado Vale Verde – um paraíso terrestre contrastando
com o deserto pós-apocalíptico que dominou o mundo. Nessa jornada, ela acaba
topando com Max, e tenta matá-lo umas duas vezes, mas com o tempo, desenvolve
confiança e acaba se tornando mais piedosa. Ao final do filme, tem sua vida
salva por Max, passando pela provação suprema, e retorna para a Cidadela, sendo
declarada a nova líder e tornando-se um símbolo de esperança para aquela terra
desolada.
PRESTE ATENÇÃO: Apesar de não ter
romance (ainda bem), há um momento muito singelo no filme, quando Max salva a
vida de Furiosa, doando seu próprio sangue e dizendo a ela, pela primeira vez,
o seu nome. Posso ser muito viajado, mas nada me tira da cabeça que isso foi um
casamento simbólico, muito melhor do que o horrível clichê de casal se beijando
no meio de uma batalha/cena de ação/destruição em massa.
Um
dos melhores filmes da história e clássico inquestionável, “Aliens, o Resgate” traz
de volta a tenente Ellen Ripley, interpretada pela diva absoluta Sigourney
Weaver, cuja performance rendeu-lhe uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz. Um
feito e tanto para um filme de ação e ficção científica.
Ellen Ripley é uma das primeiras
heroínas do cinema cujo destaque ganhou o mundo. Nesta sequência, em
particular, Ripley é mostrada com toda a complexidade: a tristeza por saber que
décadas se passaram e sua filha já estava morta; a raiva e o inconformismo de
ser uma mulher fora de seu tempo; o desespero de confrontar novamente a
criatura Xenomorph; e o instinto materno, projetado na pequena Newt, que se
torna sua protegida, naquela paisagem de terror que o planeta LV-426 se tornou.
“Aliens o Resgate” é, em minha
opinião, o melhor filme da quadrilogia (iniciada pelo clássico “Alien: O Oitavo
Passageiro” e sucedida pelos duvidosos “Alien 3” e Alien Ressurreição”). É o
que melhor mostra como uma heroína de verdade pode ser construída sem cair no
estereótipo da mulher machão.
PRESTE ATENÇÃO: na batalha final
– rainha Alien contra Ripley no robô empilhadeira. Se olharmos de maneira mais
poética, não é uma luta de vilã contra heroína. São duas mães furiosas, lutando
por suas crias: Ripley defendendo Newt, e a rainha Alien se vingando pela morte
de todos os seus ovos, incinerados pela própria Ripley.
Dirigido
pelo mestre Ridley Scott, “Até o limite da honra” (ou “G.I. Jane”, no original)
conta a história da tenente da marinha americana Jordan O’Neil, que, convencida
por uma política, ingressa no curso de fuzileiros navais (os afamados Marines),
sendo a primeira mulher a se formar no mesmo. Durante o curso (que dizem, é o
mais diabólico das forças armadas do Tio Sam), O’Neil é constantemente
humilhada, segregada pelos companheiros e incentivada a pedir desistência.
Enfrenta de tudo, inclusive tietagem da mídia, acusações de ser lésbica, e o
assédio moral do coordenador do curso. No intuito de ser respeitada pelos
camaradas, raspa a cabeça numa cena icônica, e vai aos poucos ganhando a
merecida confiança por sua competência. Demi Moore, em destaque na época,
entrega uma tenente O’Neil muito bacana, e que infelizmente não ganhou a
notoriedade que eu acho que merecia. Mas vale a pena ser vista. Especialmente
se você for militar, igual eu. Provavelmente em uma cena ou outra, você
pensará: “já passei algo desse tipo no meu curso de formação...”.
PRESTE ATENÇÃO: na luta, entre
O’Neil e o coordenador do curso, que tenta simular uma tentativa de estupro,
para provar que ela é fraca. Os colegas de O’Neil, todos presos, torcem por ela
fervorosamente, numa das melhores cenas do filme. Senti-me lá, preso e ovacionando
também.
Forte
candidato para o Oscar de Melhor Animação ano que vem, Zootopia entrega tudo
que a Disney tem de melhor e mais um pouco: exuberância visual, capricho
extremo, história cativante e reflexiva, e uma protagonista charmosa e
carismática: a coelhinha oficial de polícia Judy Hopps.
É bizarro eu incluir um desenho
nessa lista, mas necessário. Zootopia trata do tema preconceito de uma maneira
incrível, tão boa para crianças quanto para adultos. E muito dessa abordagem é
feita através de Judy, que desde filhotinha sonha em ser policial, mas enfrenta
todo o tipo de resistência: da família, dos amigos e dos colegas de trabalho. E
notem, não é por ser fêmea (há outras fêmeas na polícia, inclusive a coordenadora
da academia de oficiais é uma ursa bem rigorosa), mas por ser uma coelha,
contrastando com enormes policiais elefantes, rinocerontes e búfalos.
Aos poucos, como de costume, Judy
é convocada a mostrar sua competência num misterioso caso de sumiço de animais
e a enfrentar enormes perigos junto com a raposa Nick. Aí temos que destacar
que, mesmo sendo vítima de constante preconceito, a própria Judy é
preconceituosa, estando constantemente desconfiada de seu “amigo” raposa,
afinal, desde filhote aprendeu que as mesmas não são dignas de confiança. Mas
nada que o tempo e a mítica jornada do herói não resolvam. Judy vai se
transformando para melhor e transformando o mundo a sua volta.
Minha identificação com ela foi
quase imediata. Mesmo com mais de seis anos de caserna, vez ou outra alguém me
pergunta se eu tenho tamanho suficiente para ser bombeiro. Outra semelhança é o
quartinho que Judy mora em Zootopia, que me lembrou muito meus anos em Campo
Mourão, morando num quarto de pensão e me achando o protagonista de um filme de
aventura.
PRESTE ATENÇÃO: na homenagem
descarada ao “Poderoso Chefão”, através do ratinho mafioso Mr. Big. Fanáticos
por cinema vão pirar na cena, praticamente idêntica ao início do clássico filme
da família Corleone.
Esta
é a mais improvável protagonista desse post. Eilis não tem super poderes, não
senta a porrada em ninguém, não salva o mundo. É apenas uma jovem irlandesa da
década de 50 que, buscando uma melhor condição de vida, vai para os Estados
Unidos trabalhar e estudar.
Foi a primeira vez desde 2008 que
fui ao cinema assistir um romance (o último foi a bomba de tolete “Jogo de Amor
em Las Vegas”, que só me sujeitei a ir para não perder a namorada, na época). E
– estranho – adorei o filme, principalmente sua protagonista.
Eilis, interpretada pela
maravilhosa Saoirse Ronan, passa por todos os passos da jornada do herói de
maneira escancarada: ingressa num novo mundo, chegando aos Estados Unidos,
conhece um mentor (o padre da comunidade irlandesa), faz amigos e desafetos,
enfrenta dificuldades no emprego e na vida solitária da pensão e, próximo ao
final, enfrenta a provação suprema na forma de um dilema moral muito
interessante e bem cabuloso. O mais bacana é que tudo isso é a vida comum de
uma garota. Muito mais próximo da vida de qualquer um de nós, meros mortais,
que enfrentamos a labuta e a rotina, com dúvidas, dilemas e conquistas. Foi por
isso e mais um pouco que incluí Eilis nessa lista, para provar que a jornada de
um herói (ou heroína) pode muito bem permear o dia-a-dia de quem está disposto
a se desafiar. Mesmo que esse desafio não seja salvar o planeta de uma ameaça
colossal.
PRESTE ATENÇÃO: em dois momentos
bizarros do longa. No primeiro, Eilis está no navio, seguindo para a América e
é atacada por uma diarréia medonha. Com todos os banheiros trancados, ela se
alivia num balde, numa cena cômica, com direito a efeito sonoro e a Saoirse de
cócoras no baldão. A segunda cena é quando a gerente da loja onde Eilis
trabalha lhe empresta um maiô e uma lâmina de gilete, para raspar as virilhas.
Não há nada de anormal nas duas cenas, mas achei fantástico retratarem a
mocinha como uma mulher crível, que tem pelos e desarranjo intestinal.
Diferente da imensa maioria dos filmes, onde as intocáveis musas nunca
desmancham o maravilhoso penteado, mesmo pulando de penhascos, e nunca
menstruam. Ou você consegue lembrar de algum filme conhecido onde a mocinha
pede licença de pegar um OB?
Por enquanto é isso. Reforço que
muitos nomes poderiam ser adicionados a esta lista, mas segui escolhas bem
pessoais, baseado no quanto gosto de cada filme. E no quanto cada pequeno mito
particular contribui para que eu possa construir o meu próprio.
Até o próximo post (que,
acredito, demorará menos de dois anos para vir).
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