segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A Jornada da Heroína

Em meados de 1950, Joseph Campbell publicou o livro “O herói de mil faces”, onde comparava mitos, lendas e religiões do mundo inteiro, evidenciando suas semelhanças e dissecando-as em uma série de passos que chamou de “monomito” – o mito único. Assim, de acordo com sua pesquisa, todo herói passa por situações bem parecidas, cujo mote básico é sair de um mundo comum, embarcar em uma aventura, superar uma grande provação e retornar, transformado. Seu trabalho influenciou o cinema e a literatura desde então, sendo facilmente detectável em obras como Guerra nas Estrelas, Matrix, Harry Potter, entre outros.
Um fato curioso, entretanto, é que nos mitos antigos o herói geralmente é um homem, e a mulher quase sempre é representada por um aspecto feminino superior: uma deusa, uma grande mãe ou sacerdotisa, que auxilia, e eventualmente desafia o herói. Há alguns poucos exemplos de mulheres protagonistas de seus próprios mitos – Perséfone, Alceste, Anesidora – mas elas são minoria e infelizmente, pouco conhecidas.
Mas no post de hoje – que marco como meu retorno aos escritos deste empoeirado blog – quero mencionar algumas heroínas modernas da sétima arte. Mulheres que passaram pela jornada do herói em seus respectivos filmes, e que mostraram algum aspecto de caráter que me chamou a atenção. A lista é pequena – muitas outras heroínas do cinema poderiam ser mencionadas – mas acredito que o grupo é diverso e segue as minhas preferências cinematográficas.

ALERTA: SOLTO SPOILERS DE TODOS OS FILMES MENCIONADOS, INCLUSIVE EVENTUAIS REVIRAVOLTAS.



- IMPERATRIZ FURIOSA (Mad Max: Estrada da Fúria)


Disparado meu filme favorito de 2015, “Mad Max: Estrada da Fúria”, pode ser interpretado (dentro da psicologia, em minha opinião pessoal) de duas maneiras: como uma reconciliação de um homem com sua anima (Max se tornando mais humano com a convivência com cada uma das mulheres do filme), e como uma jornada de herói vivida pela Imperatriz Furiosa, interpretada por Charlize Theron.
Nesta segunda interpretação, pode-se ver a clássica história da pessoa amargurada, que tenta compensar seu passado de erros com uma atitude de redenção. Furiosa, durante muito tempo serva do vilão/ditador Immortan Joe, resolve se redimir fugindo com as noivas do mesmo, buscando um lugar chamado Vale Verde – um paraíso terrestre contrastando com o deserto pós-apocalíptico que dominou o mundo. Nessa jornada, ela acaba topando com Max, e tenta matá-lo umas duas vezes, mas com o tempo, desenvolve confiança e acaba se tornando mais piedosa. Ao final do filme, tem sua vida salva por Max, passando pela provação suprema, e retorna para a Cidadela, sendo declarada a nova líder e tornando-se um símbolo de esperança para aquela terra desolada.
PRESTE ATENÇÃO: Apesar de não ter romance (ainda bem), há um momento muito singelo no filme, quando Max salva a vida de Furiosa, doando seu próprio sangue e dizendo a ela, pela primeira vez, o seu nome. Posso ser muito viajado, mas nada me tira da cabeça que isso foi um casamento simbólico, muito melhor do que o horrível clichê de casal se beijando no meio de uma batalha/cena de ação/destruição em massa.

-ELLEN RIPLEY (Aliens, o Resgate)

Um dos melhores filmes da história e clássico inquestionável, “Aliens, o Resgate” traz de volta a tenente Ellen Ripley, interpretada pela diva absoluta Sigourney Weaver, cuja performance rendeu-lhe uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz. Um feito e tanto para um filme de ação e ficção científica.
Ellen Ripley é uma das primeiras heroínas do cinema cujo destaque ganhou o mundo. Nesta sequência, em particular, Ripley é mostrada com toda a complexidade: a tristeza por saber que décadas se passaram e sua filha já estava morta; a raiva e o inconformismo de ser uma mulher fora de seu tempo; o desespero de confrontar novamente a criatura Xenomorph; e o instinto materno, projetado na pequena Newt, que se torna sua protegida, naquela paisagem de terror que o planeta LV-426 se tornou.
“Aliens o Resgate” é, em minha opinião, o melhor filme da quadrilogia (iniciada pelo clássico “Alien: O Oitavo Passageiro” e sucedida pelos duvidosos “Alien 3” e Alien Ressurreição”). É o que melhor mostra como uma heroína de verdade pode ser construída sem cair no estereótipo da mulher machão.
PRESTE ATENÇÃO: na batalha final – rainha Alien contra Ripley no robô empilhadeira. Se olharmos de maneira mais poética, não é uma luta de vilã contra heroína. São duas mães furiosas, lutando por suas crias: Ripley defendendo Newt, e a rainha Alien se vingando pela morte de todos os seus ovos, incinerados pela própria Ripley.

-JORDAN O’NEIL (Até o Limite da Honra)


Dirigido pelo mestre Ridley Scott, “Até o limite da honra” (ou “G.I. Jane”, no original) conta a história da tenente da marinha americana Jordan O’Neil, que, convencida por uma política, ingressa no curso de fuzileiros navais (os afamados Marines), sendo a primeira mulher a se formar no mesmo. Durante o curso (que dizem, é o mais diabólico das forças armadas do Tio Sam), O’Neil é constantemente humilhada, segregada pelos companheiros e incentivada a pedir desistência. Enfrenta de tudo, inclusive tietagem da mídia, acusações de ser lésbica, e o assédio moral do coordenador do curso. No intuito de ser respeitada pelos camaradas, raspa a cabeça numa cena icônica, e vai aos poucos ganhando a merecida confiança por sua competência. Demi Moore, em destaque na época, entrega uma tenente O’Neil muito bacana, e que infelizmente não ganhou a notoriedade que eu acho que merecia. Mas vale a pena ser vista. Especialmente se você for militar, igual eu. Provavelmente em uma cena ou outra, você pensará: “já passei algo desse tipo no meu curso de formação...”.
PRESTE ATENÇÃO: na luta, entre O’Neil e o coordenador do curso, que tenta simular uma tentativa de estupro, para provar que ela é fraca. Os colegas de O’Neil, todos presos, torcem por ela fervorosamente, numa das melhores cenas do filme. Senti-me lá, preso e ovacionando também.

-JUDY HOPPS (Zootopia)


Forte candidato para o Oscar de Melhor Animação ano que vem, Zootopia entrega tudo que a Disney tem de melhor e mais um pouco: exuberância visual, capricho extremo, história cativante e reflexiva, e uma protagonista charmosa e carismática: a coelhinha oficial de polícia Judy Hopps.
É bizarro eu incluir um desenho nessa lista, mas necessário. Zootopia trata do tema preconceito de uma maneira incrível, tão boa para crianças quanto para adultos. E muito dessa abordagem é feita através de Judy, que desde filhotinha sonha em ser policial, mas enfrenta todo o tipo de resistência: da família, dos amigos e dos colegas de trabalho. E notem, não é por ser fêmea (há outras fêmeas na polícia, inclusive a coordenadora da academia de oficiais é uma ursa bem rigorosa), mas por ser uma coelha, contrastando com enormes policiais elefantes, rinocerontes e búfalos.
Aos poucos, como de costume, Judy é convocada a mostrar sua competência num misterioso caso de sumiço de animais e a enfrentar enormes perigos junto com a raposa Nick. Aí temos que destacar que, mesmo sendo vítima de constante preconceito, a própria Judy é preconceituosa, estando constantemente desconfiada de seu “amigo” raposa, afinal, desde filhote aprendeu que as mesmas não são dignas de confiança. Mas nada que o tempo e a mítica jornada do herói não resolvam. Judy vai se transformando para melhor e transformando o mundo a sua volta.
Minha identificação com ela foi quase imediata. Mesmo com mais de seis anos de caserna, vez ou outra alguém me pergunta se eu tenho tamanho suficiente para ser bombeiro. Outra semelhança é o quartinho que Judy mora em Zootopia, que me lembrou muito meus anos em Campo Mourão, morando num quarto de pensão e me achando o protagonista de um filme de aventura.
PRESTE ATENÇÃO: na homenagem descarada ao “Poderoso Chefão”, através do ratinho mafioso Mr. Big. Fanáticos por cinema vão pirar na cena, praticamente idêntica ao início do clássico filme da família Corleone.

-EILIS LACEY (Brooklyn)


Esta é a mais improvável protagonista desse post. Eilis não tem super poderes, não senta a porrada em ninguém, não salva o mundo. É apenas uma jovem irlandesa da década de 50 que, buscando uma melhor condição de vida, vai para os Estados Unidos trabalhar e estudar.
Foi a primeira vez desde 2008 que fui ao cinema assistir um romance (o último foi a bomba de tolete “Jogo de Amor em Las Vegas”, que só me sujeitei a ir para não perder a namorada, na época). E – estranho – adorei o filme, principalmente sua protagonista.
Eilis, interpretada pela maravilhosa Saoirse Ronan, passa por todos os passos da jornada do herói de maneira escancarada: ingressa num novo mundo, chegando aos Estados Unidos, conhece um mentor (o padre da comunidade irlandesa), faz amigos e desafetos, enfrenta dificuldades no emprego e na vida solitária da pensão e, próximo ao final, enfrenta a provação suprema na forma de um dilema moral muito interessante e bem cabuloso. O mais bacana é que tudo isso é a vida comum de uma garota. Muito mais próximo da vida de qualquer um de nós, meros mortais, que enfrentamos a labuta e a rotina, com dúvidas, dilemas e conquistas. Foi por isso e mais um pouco que incluí Eilis nessa lista, para provar que a jornada de um herói (ou heroína) pode muito bem permear o dia-a-dia de quem está disposto a se desafiar. Mesmo que esse desafio não seja salvar o planeta de uma ameaça colossal.
PRESTE ATENÇÃO: em dois momentos bizarros do longa. No primeiro, Eilis está no navio, seguindo para a América e é atacada por uma diarréia medonha. Com todos os banheiros trancados, ela se alivia num balde, numa cena cômica, com direito a efeito sonoro e a Saoirse de cócoras no baldão. A segunda cena é quando a gerente da loja onde Eilis trabalha lhe empresta um maiô e uma lâmina de gilete, para raspar as virilhas. Não há nada de anormal nas duas cenas, mas achei fantástico retratarem a mocinha como uma mulher crível, que tem pelos e desarranjo intestinal. Diferente da imensa maioria dos filmes, onde as intocáveis musas nunca desmancham o maravilhoso penteado, mesmo pulando de penhascos, e nunca menstruam. Ou você consegue lembrar de algum filme conhecido onde a mocinha pede licença de pegar um OB?

Por enquanto é isso. Reforço que muitos nomes poderiam ser adicionados a esta lista, mas segui escolhas bem pessoais, baseado no quanto gosto de cada filme. E no quanto cada pequeno mito particular contribui para que eu possa construir o meu próprio.

Até o próximo post (que, acredito, demorará menos de dois anos para vir).

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